Duas metodologias implantadas em Pelotas são ferramentas para estreitar laços familiares; desde o início de julho, o Conte Comigo e o Criando Crianças Seguras (ACT) atuam na prevenção e no combate à violência
05-08-2018 | 14:05:57
Julho marcou o início da implantação de duas metodologias inéditas no Brasil, com 440 crianças, de 2 a 3 anos, de Pelotas. Prevenir a violência e fortalecer os vínculos familiares norteiam as atividades do Conte Comigo e do Criando Crianças Seguras (ACT) , recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e já aplicados com sucesso em outros países.
Os métodos vão embasar o Estudo Piá - Primeira Infância Acolhida, fruto de convênio entre a Prefeitura e o Programa de Pós-graduação em Epidemiologia da UFPel. A expectativa é de que a pesquisa forneça evidências para fundamentar novas políticas públicas no município. A aplicação das metodologias é uma das conquistas do eixo preventivo do Pacto Pelotas pela Paz.
A cena não é incomum para quem vê de fora: mãe e filho, sentados, lado a lado, com um livro a sua frente. A publicação colorida, cheia de figuras e que prende a atenção dos pequenos, no entanto, representa muito mais. O ato simples e genuíno de compartilhamento de livros é a base do Conte Comigo.
Em ação inédita no Brasil, a metodologia volta o olhar às crianças e à forma como se estimula a sua imaginação, criatividade e conhecimento através dos livros. Neste sistema, não se conjuga o verbo ler, mas sim, compartilhar – principalmente o momento de aproximação entre mãe e filho. O trabalho foi iniciado na Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Ruth Blank e no Centro Tecnológico Educacional de Pelotas (Cetep).
Tatiane Sacramento diz que até tenta criar o hábito em Alicia, de 2 anos e 8 meses, mas a pequena é inquieta e impaciente, o que dificulta o momento de interação. Paciência deve ser a palavra-chave durante o processo, considera o facilitador Eduardo Soares.
“Não é necessário que eles conheçam todas as palavras apresentadas nos livros, porque essa é uma oportunidade para que aprendam novos termos a partir do auxílio que vão receber. É um trabalho que vai exigir muita paciência e perseverança, principalmente, no início”, acrescentou.
Enquanto as mães participam da atividade, as crianças são convidadas a permanecer em uma outra sala, repleta de brinquedos, folhas para desenho, lápis de cor e massa de modelar. Tudo pensado de forma lúdica, para atrair a atenção e possibilitar que as mães se concentrem na metologia apresentada. No entanto, a transição entre uma sala e outra fica disponível todo o tempo.
Apresentando o Conte Comigo ao grupo, o facilitador pontuou como a estratégia deve refletir no desenvolvimento das crianças. Ajudar na concentração, melhorar a comunicação – tanto com a mãe quanto com quem as cercam –, desenvolver habilidades de raciocínio e prepará-las à vida escolar. Além disso, oportunizar mais uma atividade de interação durante o dia é uma forma de intensificar a conexão de pais e filhos, o que contribui para um vínculo mais sólido e uma relação próxima e de diálogo.
A cada semana, a família recebe um novo livro e os pais são capacitados para a dinâmica, que deve durar, em média, 10 minutos por dia. O objetivo é encorajar a participação das crianças, sem repreendê-las por erros, dúvidas ou pela forma incomum de manusear o objeto.
“As crianças têm que se sentir livres para se relacionar com o livro da forma que considerarem melhor, seja olhando o livro de trás para frente, de cabeça para baixo ou ficando os 10 minutos da atividade na mesma página, atentos a um desenho qualquer”, explicou o facilitador.
O Conte Comigo utiliza obras de imagens para despertar a curiosidade das crianças, desenvolver suas habilidades cognitivas e valores, o que também contribui para o fortalecimento de vínculos familiares. Na primeira semana, a obra Handa’s Surprise (1994), de Eileen Browne, foi escolhida para embasar as primeiras técnicas ensinadas. O livro, composto mais por figuras do que texto, conta a história de uma menina que percorre a floresta com uma cesta de frutas sob a cabeça.
Soares explica que a publicação é uma excelente oportunidade para trabalhar nomes de cores, animais, frutas e objetos, além de instigar a curiosidade e imaginação. A partir da técnica simples de apontar e nomear os elementos, fazer perguntas relacionando as histórias com seus cotidianos e com o nível de aprendizado já conquistado pelas crianças, é possível garantir o interesse dos pequenos.
As mães também foram orientadas a adaptar a atividade de acordo com sua própria rotina. A recomendação principal é escolher um horário em que os filhos não estejam cansados ou com fome, além de um ambiente tranquilo. Também é importante que tratem as interrupções com naturalidade e não proíbam, radicalmente, algo proposto pela criança, como permanecer com o brinquedo favorito em mãos.
Durante a primeira sessão, vídeos exemplificando a técnica foram apresentados, o que instigou a curiosidade das mães e, até mesmo, inspirou novas abordagens. “Uma ideia é dizer ‘filha, me diz o nome desse bichinho porque a mãe esqueceu’. Noto que ela se sente especial quando sabe algo que nós não conhecemos, por isso é uma forma de aguçar o interesse”, comentou Rosa dos Santos, mãe de Milena, de 2 anos e 10 meses.
Já realizado em outros países com bons resultados, como Itália, África do Sul e Inglaterra, o Conte Comigo deve atingir 220 crianças de Pelotas. A técnica será desempenhada durante oito sessões, por 20 facilitadores, até o final de novembro.
Um lar seguro é aquele que não deixa a violência entrar, e deve ser construído com atitudes positivas no cotidiano. O ACT – Criando Crianças Seguras busca, através de ações preventivas, preparar as famílias para lidar com o desenvolvimento infantil sem o uso de práticas violentas.
O ambiente colorido e lúdico da Emei Bernardo de Souza foi o espaço escolhido para receber os grupos de pais convidados a participar da aplicação do método, e assim como no Conte Comigo, as crianças permanecem em uma outra sala, acompanhadas de educadores.
Nas reuniões, os pais são estimulados a conversar sobre o dia a dia e a exporem situações vivenciadas com seus filhos. Para isso, são utilizados vídeos, atividades práticas e um livro de tarefas, a fim de que compreendam comportamentos e as fases pelas quais a criança passa.
“Uma das certezas é que essas crianças, hoje com 3 anos, serão, em algum momento, alunos das nossas Emeis. Por isso, trabalhar e prevenir a violência com os pais, já na primeira infância, é tão importante”, destacou a coordenadora da metodologia, Alicéia Ceciliano.
Segundo a facilitadora Suzana Martins, a receptividade foi positiva, mas ainda esbarra na falta de participação, pois algumas responsáveis não conseguem comparecer a todos os encontros. Para solucionar o problema, a Prefeitura tem oferecido o transporte até a Bernardo de Souza.
As primeiras observações demonstram a preocupação das famílias em buscar meios para a construção de um lar seguro, onde os filhos possam crescer e se desenvolver em paz. Falta de apoio dos companheiros e familiares na criação, e a dificuldade em conseguir emprego, também foram assuntos que se destacaram nas conversas com as mães.
“É preciso entender que a criança não domina determinados comportamentos e tem ações egocêntricas na formação de sua personalidade”, esclareceu a coordenadora pedagógica Suzana Martins. A faixa etária dos 3 anos é conhecida como “Tantrum Threes” – em tradução “Três Anos da Birra” –, quando as crianças têm atitudes egocêntricas, relacionadas a afirmação da personalidade.
O desejo de que os filhos tenham um futuro longe da violência fez com que Íris buscasse meios de criá-los em ambientes mais saudáveis, e encontrasse apoio nas sessões do ACT.
“Quero que meus filhos tenham um futuro feliz e não sejam influenciados pelos exemplos ruins. Que tenham a mente madura para escolher o próprio caminho”, contou a moradora da Balsa.
Rosa é mãe de gêmeas de 9 anos e de outra menina de 2. Residente à Sanga Funda, ela conta que quando foi convidada para participar dos encontros não imaginava o que aconteceria; foi surpreendida. Nas conversas com as outras participantes e a facilitadora, encontrou ajuda para entender como agir nos momentos em que as filhas demandam mais firmeza. “Aprendi a parar e pensar quando as meninas exigem mais atenção no dia a dia. Espero que elas se acalmem e depois converso”, afirmou Rosa.
A facilitadora Suzana explica que enquanto os meninos são atingidos, em maior grau, pela agressão física, as meninas sofrem mais com o dano emocional. Além dessas formas, o abuso sexual e as negligências – desde a privação de carinho até necessidades básicas – são verificadas como violências e precisam ser combatidas.
“A sociedade naturaliza a violência, mas ela não é normal. O sofrimento causado a criança hoje, é levado para o resto da vida”, afirma Suzana.
No ACT, os pais participarão de atividades que incentivam o controle da raiva, além da importância de saber utilizar os meios eletrônicos de maneira sadia. A disciplina e os exemplos familiares também serão abordados, a fim de que as famílias entendam que a mudança de comportamento é a melhor saída para criar filhos felizes e longe de abusos.